Jurídico

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Delação Anônima

Escrevemos este post há algum tempo[1], mas decidimos dar-lhe publicidade depois de passados os ventos do furacão que removeu as estruturas da operação cognominada como “Castelo de Areia”.
Isso porque, não pretendo justificar a decisão prolatada no habeas corpus nº 137.349, relatado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça[2], nem muito menos trabalhar com qualquer situação concreta.
Diversamente disso, tratamos abstratamente da delação anônima, considerando-a como notícia de infração criminal, cuja eficácia deve ser aferida pelo seu conteúdo e elementos que eventualmente lhe acompanhem.
O debate se dá na zona cinzenta de compatibilização entre diversos postulados constitucionais, dentre outros, a dignidade da pessoa humana[3], o resguardo aos sigilos, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, a vedação ao anonimato, a moralidade pública.
Zona cinzenta porque não se trata mais da mecânica aplicação deste (branco) ou daquele princípio (preto), mas daquelas situações de miscigenação entre eles, onde as matizes ora escurecem, ora ficam esquálidas, pela tonalidade com que o princípio entra no quadro posto à apreciação.
Melhor dizendo, no ponto, incidem diversos princípios que mutuamente se amoldam, pela sua densidade respectiva, impondo-se sua harmonização.
Bom é dizer, nessa clivagem constitucional, pensamos que a solução conferida atualmente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça a matéria é absolutamente adequada. Os precedentes apontam para a irregularidade de uma investigação pautada pela devassa telefônica e fiscal quando arrimada exclusivamente em delação anônima.
Não se propugna, obviamente, o desprezo as denúncias anonimamente ventiladas. Essas sem dúvida são importantes veículos de notícia dos fatos criminosos, sendo que, nem sempre, a forma utilizada visa encobrir uma espúria acusação, mas, por vezes, impedir fundado receio contra represálias.
Noutro giro, o argumento utilizado ad terrorem, de que tal entendimento implicaria no esvaziamento do poder de investigação, mormente em flagrante delitos, não orça com a realidade, não ultrapassando as fronteiras largas da fantasia. Deixemos para o cinema os hard cases em que a prova não pode ser utilizada pela autoridade policial ter irrompido a cena do crime sem mandado.
Há tanto, pensamos, não se chegou em terras brasileiras a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada — fruits of poisonous tree.
A nosso ver, a denúncia anônima deve ser recebida, processada e conhecida como notícia crime, respaldando o início da investigação (persecutio criminis), mas não pode, todavia, implicar, só por si, em quebra dos sigilos constitucionalmente protegidos, como primeira e única medida investigatória. Mais que isso, com todas as vênias de estilo, a denúncia não pode sequer ser conhecida quando destituída de um mínimo apoio probatório.
Dito às claras e às secas, não se pode agasalhar o denuncismo irresponsável, não condizente com uma República Democrática de Direito.
Não por outra razão, que o Supremo Tribunal Federal editou a Resolução nº 361, de 21 de maio de 2008, vedando, no inciso II do artigo 5º[4], reclamações, críticas ou denúncias anônimas.
O malbaratamento de qualquer garantia constitucional implica na desvalia da força normativa da Constituição, instituindo um estado de verdadeira esqualidez constitucional, com o consequente esmaecimento de sua força.
Digno de nota, ainda, que a Constituição quando trabalha com os sigilos é justamente para protegê-los, dar-lhes proteção, estatuindo limitações a sua quebra, em dicção, pelo menos, que serve como forte vetor hermenêutico.
Posta assim a questão, a delação anônima não é suficiente ao inicio de investigação acaso desacompanhada de arrimo probatório, sendo que, igualmente, não justifica, per se, a quebra dos sigilos constitucionalmente reservados.


[1] Exceto este parágrafo, que agora redigimos.
[3] A Carta Magna obstaculiza a utilização ou transformação do ser humano em objeto de processos e ações estatais deslegitimadas.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Repetitivos — mandatário infiel — pressão de enquadramento — Novo CPC

Efetivamente, o presente post retoma a temática do anterior, concernente ao instituto da repercussão geral[1], mas agora na toada dos recursos especiais repetitivos do Superior Tribunal de Justiça.
Com a consciência de ser repetitivo (perdoe a corruptela), volto ao ponto por recentíssima notícia do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria[2]. Ainda, digo, a própria notícia resultou em rápido debate no twitter com Leonardo Ribeiro (@leofsribeiro), Fernando Gajardoni (@FGajardoni) e André Roque (@AVRoque), relativamente a jurisprudência corretiva, ofensiva e defensiva. A diversidade do rótulo bem aponta a divergência de opiniões.
Ao propósito, múltiplos recursos especiais sobre idêntica questão de direito (Rechtsfrage), implicam no processamento de alguns (representativos) e, consequentemente, no sobrestamento de outros, devidamente representados por aqueles.
Essa é a sistemática estatuída no artigo 543-C do Código de Processo Civil, cujos excertos expressivos transcrevemos:
“Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo.       
§ 1º Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.        
§ 2º Não adotada a providência descrita no § 1º deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.    
(...).
§ 7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem:       
I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou      
II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.    
§ 8º Na hipótese prevista no inciso II do § 7º deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.”          
Exatamente, a referida notícia dá conta que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento quanto à impossibilidade do manejo do recurso de agravo de instrumento para trânsito de especial submetido à liturgia dos recursos repetitivos.
Portanto, o recurso sobrestado fica represado no Tribunal a quo a espera do julgamento da questão repetitiva pelo STJ, ao que se seguirá sua não admissão, provimento ou remessa ao Superior Tribunal — neste último caso, para adequar a decisão ao entendimento placitado.
Ë o estado de letargia processual.
Feito o registro, prosseguimos para novamente externar preocupação sobre tal cristalização jurisprudencial, iniciada pelo Supremo na repercussão geral e agora repisada pelo Superior Tribunal nos repetitivos.
Sem esforço, cogitemos: e se um recurso sobrestado sob o rótulo mal acomodado de determinada questão de direito não resistir bem à pressão do enquadramento. O recurso especial sobrestado não está representado naquela questão de direito devolvida ao STJ no recurso dito representativo.
Se o STJ placitar a ótica do STF, fechar-se-á a via da reclamação e do agravo contra a incorreta decisão de sobrestamento da Corte inferior[3], no que a propalada notícia é expressiva.
A lógica dessa jurisprudência corretiva (GAJARDONI) ou ofensiva (ROQUE) é a racionalização da via recursal, a potencialização dos resultados (uma decisão, múltiplos recursos), pelo que descabida — na contramão da mais cartesiana das lógicas — a reanálise dos recursos representados por outras vias.
Nada obstante, o incorreto sobrestamento do recurso especial, por conta de recurso que não lhe representa (mandatário infiel), redunda em usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça, com reflexos na própria e desejada uniformização do direito.
Assim, penso que o melhor caminho é permitir o uso da reclamação para análise pelo Superior Tribunal de Justiça da correção da decisão que sobrestou recurso, a fim de ser averiguada a relação de representação.
Nesta linha, reforço, deve ao Novo CPC ser inserido parágrafo 5º no artigo 991[4], com a seguinte redação: Cabe reclamação ao Presidente do Tribunal competente para julgamento do recurso quando o processo suspenso versar sobre matéria diversa do recurso representativo, cuja decisão será irrecorrível”.


[4] O artigo 942 do projeto não necessitaria de alteração, uma vez que o texto propugnado encontra respaldo no inciso I daquele preceptivo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Repercussão geral — represamento indevido — pressão de enquadramento — Novo CPC

Retorno às tintas sobre um tema que habita uma das interseções entre o direito constitucional e o processual, qual seja, a repercussão geral do recurso extraordinário, pressuposto de conhecimento desta via augusta e angusta.
Em realidade, chamou minha atenção notícia sobre decisão proferida no final do mês transato, que dava conta do não conhecimento de reclamação por suposto equívoco na aplicação, pelo Tribunal de origem, da repercussão geral[1].
Consabido é, existindo multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, enquanto um ou alguns extraordinários representativos ascendem ao Supremo Tribunal Federal, os demais ficam sobrestados até o pronunciamento jurisdicional sobre a questão constitucional posta.
Transcreve-se o artigo 543-B do Código de Processo Civil:
Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§ 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§ 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§ 5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.
Assim, a jurisprudência da Suprema Corte consolidou o entendimento de que sobrestado um recurso pela repercussão geral, este fica represado no Tribunal a quo a espera do julgamento da questão representativa pelo STF. Após o que, o recurso será declarado não admitido (eficácia pan-processual[2]), prejudicado, provido ou remetido ao Supremo — neste último caso, para adequar a decisão ao entendimento placitado.
A bem da verdade, o recurso extraordinário sobrestado fica num estado de letargia, como deixa claro o próprio Regimento Interno do STF:
Art. 328-A. Nos casos previstos no art. 543-B, caput, do Código de Processo Civil, o Tribunal de origem não emitirá juízo de admissibilidade sobre os recursos extraordinários já sobrestados, nem sobre os que venham a ser interpostos, até que o Supremo Tribunal Federal decida os que tenham sido selecionados nos termos do § 1º daquele artigo.
§ 1º Nos casos anteriores, o Tribunal de origem sobrestará os agravos de instrumento contra decisões que não tenham admitido os recursos extraordinários, julgando-os prejudicados nas hipóteses do art. 543-B, § 2º, e, quando coincidente o teor dos julgamentos, § 3º.
§ 2º Julgado o mérito do recurso extraordinário em sentido contrário ao dos acórdãos recorridos, o Tribunal de origem remeterá ao Supremo Tribunal Federal os agravos em que não se retratar.
Pois bem, adiantando minha preocupação, e se um recurso sobrestado, sob a tarja de determinada matéria — submetida à repercussão geral —, não resistir bem à pressão do enquadramento, isto é, o recurso trabalhar com especificidades constitucionais suficientes a lhe distinguir daqueles carimbados com aquela tarja[3].
 Reforce-se, o recorrente vê seu recurso sobrestado, submetido ao julgamento em série, a espera de um rótulo, que, todavia, não lhe cai bem, pois a matéria objeto do seu recurso é distinta daquela a ser enfrentada na repercussão geral reconhecida.
Nessa hipótese, temos um recurso extraordinário, versando sobre violação constitucional, que fica empacado indevidamente na origem, ao que se abriria, em tese, a interposição do recurso de agravo de instrumento, levando aquele ao conhecimento do Supremo, ou, então, o expediente da reclamação, para coarctar o incorreto represamento usurpador da competência da Corte Constitucional.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal vem negando o manejo das duas vias para os recursos sobrestados na origem, remetendo a problemática à resolução intestinal dos Tribunais de Origem.
Salvo ledo engano, a posição abstencionista do Supremo começou a ser construída no julgamento da questão de ordem em ação cautelar nº 2177[4], quando se assentou que as pretensões cautelares dos processos sobrestados devem ser analisadas pelos Tribunais a quo.
Assim, após algumas decisões vacilantes, como a do saudoso Ministro Menezes Direito, na reclamação nº 7.523[5] — acolhendo reclamação para determinar a análise de recurso extraordinário interposto, já que represado incorretamente —, a toada é a de submissão de tal temática aos tribunais anteriores.
Precisamente, na questão de ordem no agravo de instrumento nº 760.358, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, realizou-se a clivagem atual da matéria, convertendo, ao final, o recurso em agravo regimental, com sua consequente devolução para origem, a fim de que o Tribunal recorrido equacionasse o tema.
Nesse julgamento, o relator consignou expressamente a existência de uma escolha política pela adoção do instituto da repercussão geral, a qual a Suprema Corte deveria dar consequência, abstendo-se de enfrentar o sobrestamento dos recursos pelos Tribunais anteriores.
A obviedade, o relator não negou a possibilidade de situações teratológicas na operação do sistema, mas advoga a existência de mecanismos suficientes para reparação (v.g. coisa julgada inconstitucional é inexigível e enseja ação rescisória) (AI-QO 760.358).
Na mesma linha, colhe-se trecho de voto da Ministra Ellen Gracie na reclamação nº 7.569:
Penso não ser adequada a ampliação da utilização da reclamação para correção de equívocos na aplicação da jurisprudência desta Corte aos processos sobrestados na origem. (...). A análise individualizada da aplicação da jurisprudência firmada por esta Corte no âmbito da repercussão geral acarretará um drástico aumento do número de reclamações a serem apreciadas neste Supremo Tribunal, o que certamente não estará em harmonia com o objetivo pretendido com a criação do requisito da repercussão geral.
O argumento da Corte é sedutor. Se o objetivo da repercussão geral era racionalizar o recurso extraordinário — permitindo a análise da matéria constitucional uma única vez, com a reprodução exponencial do seu resultado para os recursos idênticos —, seria ilógico que o Supremo Tribunal Federal voltasse a analisar esses recursos sob outras vestes (agravos e reclamações). O represamento dos recursos extraordinários desaguaria em agravos e reclamações.
Todavia, penso eu, não ser está à solução mais correta.
Isso porque, o represamento indevido de determinado recurso extraordinário, veiculando questão constitucional distinta daquela representativa e submetida ao Supremo, implica, sem dúvida ou esforço hermenêutico, em usurpação da competência desta Corte para análise de matéria constitucional, propriamente de potencial violação da Constituição, com o subsequente enfraquecimento da força normativa desta[6].
Aliás, percepção diversa embucha uma contradição. Se o Tribunal de origem tem a última palavra sobre o quê está ou não embainhado em determinada repercussão geral, por que não lhe assegurar a última palavra sobre a possibilidade de existência de violação à Constituição no recurso extraordinário, extinguindo no ponto o agravo de instrumento.
Idêntica a resposta: essas matérias tem que necessariamente ser submetidas ao Tribunal jungido do encargo de preservar a Constituição da República, aquele que, para rememorar a constante lembrança de Pertence, tem: "o indesejável privilégio (...) de errar em último lugar" (AI nº 330.977).
Tangencialmente, o Novo CPC infelizmente mantém o quadro atual, embora unificando os regimes do extraordinário e do especial, em seu artigo 991:
Art. 991. Caberá ao presidente do tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça independentemente de juízo de admissibilidade, ficando suspensos os demais recursos até o pronunciamento definitivo do tribunal superior.
§ 1º Não adotada a providência descrita no caput, o relator, no tribunal superior, ao identificar que sobre a questão de direito já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.
§ 2º Na decisão de afetação, o relator deverá identificar com precisão a matéria a ser levada a julgamento, ficando vedado, ao Tribunal, a extensão a outros temas não identificados na referida decisão.
§ 3º Os processos em que se discute idêntica controvérsia de direito e que estiverem em primeiro grau de jurisdição ficam suspensos por período não superior a doze meses, salvo decisão fundamentada do relator.
§ 4º Ficam também suspensos, no tribunal superior e nos de segundo grau de jurisdição, os recursos que versem sobre idêntica controvérsia, até a decisão do recurso representativo da controvérsia.
Pelo exposto, o projeto de Novo CPC deve ser alterado, para ser inserido parágrafo 5º no artigo 991[7], com a seguinte redação: Cabe reclamação ao Presidente do Tribunal competente para julgamento do recurso quando o processo suspenso versar sobre matéria diversa do recurso representativo, cuja decisão será irrecorrível”.


[2] “O não-reconhecimento da repercussão geral de determinada questão tem efeito pan-processual, no sentido de que se espraia para além do processo em que fora acertada a inexistência de relevância e transcendência da controvérsia levada ao Supremo Tribunal Federal.” (MARINONI; MITIDIERO, Repercussão geral no recurso extraordinário, p. 55-56).
[3] Situação passível de reprodução na realidade, mormente pela latitude de nosso texto constitucional.
[6] “A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia” (HESSE, A força normativa da Constituição, p. 16).
[7] O artigo 942 do projeto não necessitaria de alteração, uma vez que o texto propugnado encontra respaldo no inciso I daquele preceptivo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Supremo: par ou ímpar?

Na semana passada, em que o noticiário sobre o Supremo foi dominado pelo julgamento da pertença da vaga de mandato pelo partido ou coligação, chama também atenção decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida na ADI nº 4167, em que o impedimento do Ministro Dias Toffoli assumiu relevo ímpar, julgando a Corte em composição par.
O tema também remete ao Recurso Extraordinário nº 631102, sobre a aplicabilidade da lei da ficha limpa, em que nossa Corte Constitucional, então integrada por dez (10) Ministros[1], ante o irremissível empate, manteve, após muita discussão, decisão da Corte anterior (TSE).
Pois bem, no recente julgamento, pelo impedimento do Ministro Dias Toffoli, a Corte se viu manietada, no controle concentrado de constitucionalidade, frente ao empate no Plenário de 5 votos favoráveis e 5 contrários a constitucionalidade de determinado preceptivo, do provimento jurisdicional vinculante (ADI 4167[2]).
Precisamente, na questão referente à jornada dos profissionais de educação, o Supremo, na contingência do empate, proferiu decisão, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, que ficou no meio do caminho. A ação direta foi julgada improcedente, mas, pelo empate na votação, como não alcançada a ilustrada maioria (CRFB/88, artigo 97 — lei nº 9.868/99, artigo 23), o pronunciamento jurisdicional ficou destituído de sua congênita eficácia vinculante.
Seria escusado dizer, no controle objetivo de constitucionalidade, concentrado e abstrato, os provimentos são dotados de enforcing power, com eficácia erga omnes, ainda na hipótese de improcedência, visando, em última analise, manter a supremacia da Constituição.
Não é demais rememorar, a partir da construção que seguiu a Emenda Constitucional nº 3 e da decisão prolatada na ADC nº 1-QO, assentou-se que a ADI e ADC produziriam decisões idênticas, sendo esta designada como ADI de sinal trocado. Essa similitude foi reforçada pela Emenda Constitucional nº 45, tudo a demonstrar que o conhecimento pelo Supremo daquelas ações diretas sempre implica num pronunciamento vinculante sobre (in)constitucionalidade.
Posta assim a questão, a perplexidade decorrente da decisão da ADI nº 4167 é manifesta. Pronunciamento em controle de constitucionalidade que redundou em improcedência de ADI sem eficácia vinculante, haja vista a ausência de uma solução para superação do impasse verificado no julgamento realizado.
O problema está posto. A situação tem o potencial de se repetir. Inúmeras são as hipóteses em que Ministro não possa compor determinado julgamento — apreciando a Corte em composição par —, o que é catalisado pela evidente e acentuada divisão ideológica que impera na nossa Suprema Corte.
Portanto, imprescindível que se construa uma alternativa para tais impasses, sob pena de se repetirem julgamentos em que, por assim dizer, jura-se pela obscuridade da causa (sibi non liquere)[3], alheando-se de definir, definitivamente (a redundância é propositada), temas que estão na agenda do Judiciário, para não dizer do País.
A par disso, penso que a melhor solução é o voto de qualidade do Presidente, sendo a suscitação do artigo 97 da Constituição, como contra-argumento, uma falsa questão.
Para mim, o referido dispositivo constitucional não é malferido pela circunstância de que o voto de qualidade seja considerado para composição da maioria absoluta no joeiramento de (in)constitucionalidade de ato normativo.
O que o preceptivo exige é a composição de maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade de disposição normativa, independentemente da forma como se chegou a tal maioria, matéria normalmente relegada aos regimentos internos das Cortes — ressalvadas indevidas artificializações.
Até porque, noutras hipóteses, esta maioria é igualmente extraída por disposições infraconstitucionais, não sendo claramente aferível pelos votos proferidos, como ocorre, por exemplo, no prevalecimento do dito voto médio — ótica pela qual quem placita o mais acorda com o menor.
De mais a mais, bom que se lembre, o voto de qualidade é atribuído ao Presidente da Corte, ungido democraticamente pelos seus pares, para lhes representar e, inclusive, penso eu, no período de sua investidura, assumir maiores responsabilidades, entre elas, dirimir as divergências.
Não vejo com o voto de qualidade possa ser considerado antidemocrático. O Ministro Presidente é eleito pelos seus pares, para lhes representar, nada mais justo que possa desempatar, em prestígio, inclusive, a função constitucionalmente atribuída ao Supremo de velar pela Constituição.
Alguém dirá que isso envolve o perigo do domínio do ponto de vista do Presidente. Não vejo assim. Nada impede que, em julgamento posterior, a Corte chegue a maioria prescindido do voto de qualidade.
Perigoso mesmo é esse estado de indecisão. Cogite-se, de que adiantou propor a ADI quanto ao parágrafo 4º do artigo 2º da Lei 11.738/2008. A decisão de nada vale, não tem eficácia prática, nem muito menos resolve questão inter partes.
A manutenção do empate é ainda algo de mais grave. Os votos dos Ministros podem ser utilizados isoladamente por quem pretenda (des)cumprir o ato normativo excogitado, dando azo a todo tipo de tergiversações. Pode-se sustentar, a título de exemplo, o ato normativo é inconstitucional, como já reconhecido por 5 Ministros do Supremo.
De toda sorte, ainda que não seja através do voto de qualidade, urge que o Supremo apresente solução para a questão do empate. O vácuo do poder é sempre preenchido[4], pelo que se afigura pernicioso, nesses temas, nada decidir, para a matéria ser resolvida, talvez, num jogo de par ou ímpar.


[1] De todos conhecido o recente celeuma na nomeação para a vaga aberta com a aposentadoria do Ministro Eros Grau no Supremo Tribunal Federal.
[3] A expressão non liquet, ou melhor suas iniciais N.L. eram usadas pelos Juízes romanos ao tempo da República (449-31 a. C.), quando do julgamento da questão manifestavam-se não suficientemente esclarecidos. Ao votarem nessa hipótese, apunham-nas em pequenas tábuas que traziam essas siglas, ou as letras A (absolvo) C (condeno). No caso de pronunciamento pelo non liquet, procediam-se a novos debates várias vezes seguidas. Era maneira de mostrar falta de convencimento necessária para o julgamento, como resultado da prova levada a efeito.
[4] “é preenchido, quase sempre pela atuação de uma outra (veja-se o exemplo do vácuo deixado pelo Poder Judiciário no tratamento dos conflitos de interesses de pequena expressão econômica. Programas de rádio e de televisão, atuação de ‘justiceiros’, e outras manifestações que procuram dar ao povo, com aplauso deste, um arremedo de solução de conflitos, satisfazendo o ideal de justiça que existe na mente do povo, constituem exemplos desse fenômeno de ocupação do vácuo político-social” (WATANABE, Ajuris, vol. 34).