Jurídico

sábado, 23 de abril de 2011

Consunção Processual — Recurso Especial e Extraordinário — Novo CPC

Mais uma vez volto minha atenção ao Novo CPC[1], ao disposto no § 2º do artigo 983, no que permite, na primeira de suas hipóteses, a consunção, por assim dizer, de defeitos formais do recurso especial e do recurso extraordinário.
Transcreve-se, para cotejo, o preceptivo:
“Art. 983. O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na Constituição da República, serão interpostos perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido, em petições distintas que conterão:         
(...)
§ 2º Quando o recurso tempestivo contiver defeito formal que não se repute grave, o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal poderão desconsiderar o vício, ou mandar saná-lo, julgando o mérito”
.
Na espécie, em potência, a consunção dos pressupostos processuais (amplamente) sempre esteve estipulada no artigo 249, § 2º, do Velho do CPC, repisada pelo artigo 257, § 2º, do Novo CPC, in verbis:
“Art. 257. Ao pronunciar a nulidade, o juiz declarará que atos são atingidos e ordenará as providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados.  
(...).     
§ 2º Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta”.
Feito o registro, anotamos, pelo dístico “consunção processual” queremos designar a possibilidade de ser proferida sentença de mérito ainda que o processo padeça de algum descompasso processual.
Melhor dizendo, na concepção corrente[2], na hipótese de existir no processo vício processual ligado a interesse de uma das partes — que se sagrará vencedora com a prolação da sentença de mérito —, pode o magistrado desconsiderar aquela mácula e exarar sentença.
Circunscrevendo o plano desta maneira, a matéria processual seria consumida pela pretensão de direito material. Utilizando, de maneira invertida, aturado tropo do direito processual, dá-se o sacrifício do direito processual no altar do direito material.
Demais disso, o nó górdio da questão sempre passou pela consideração do beneficiado pela irregularidade patenteada, numa análise metajurídica, projetando o resultado da sentença de mérito a ser prolatada. Por exemplo, quebrar-se-á o contraditório em prejuízo ao demandante, por conta de documento anexado pelo demandado, mas a demanda ainda assim será acolhida, não se decreta a nulidade, passando ao julgamento.
O tema é absolutamente interessante, estando diretamente vinculado à concepção que se tem sobre processo (relação jurídica, situação jurídica, procedimento em contraditório e etc.), principalmente no relativo aos supostos ou pressupostos processuais e sua classificação (existência, validade e eficácia).
Consabido é, o nascimento do direito processual está umbilicalmente ligado a separação dos pressupostos processuais do suposto de fato da relação jurídica de direito material, a partir da obra seminal de BÜLLOW.[3]
A partir daí, passamos a repetir sistematicamente um roteiro pré-estabelecido em que, num primeiro momento, são analisadas questões alheias ao mérito da demanda, para posteriormente, afastadas as primeiras, ser então enfrentada a pretensão de direito material submetida.
Daí surge o escalonamento da cognição judicial em binômios[4], trinômios (triologias) e quadrinômios, como um caminho uniforme a ser percorrido para emanação do provimento jurisdicional. Caminho este, diga-se de passagem, de mão única, primeiro percorrendo os pressupostos processuais, depois as condições da ação e, ao final, o tortuoso mérito.
Porém, com a evolução do direito processual, cada vez mais se apreende que a sentença sem resolução de mérito é um fracasso, como contundentemente adverte DIDIER, ou, ainda, uma forma de morte violenta ou danosa do processo, nos termos de CARVALHO[5]. Convenhamos, sentença que não dê cabo definitivo a pretensão, permitindo sua reedição, nada contribuindo ao desenvolvimento das relações sociais, é um desperdício a ser evitado, mormente quando intensa a atividade processual realizada no processo.
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUZA, em artigo dedicado ao tema[6], credita a RIMMELSPACHER a tese de quebrar a relação de condicionalidade existente entre as questões processuais e as mérito, a fim de permitir o enfrentamento destas em prejuízo daquelas. Advirta-se, ainda aqui buscando coincidência entre o beneficiado com a extinção sem resolução e o vencedor pela extinção com resolução de mérito.
Oportuno se torna dizer, o próprio BÜLLOW intuía que a disciplina dos pressupostos processuais merecia uma adequada clivagem, eventualmente a permitir, pela fase do processo, sua desconsideração, talvez consumição.
Peço licença para transcrever:
“Tão logo a falta de um pressuposto processual seja determinada e confirmada no início do procedimento, este se malogra totalmente. Porém, o que ocorre se esta falta não é notada e o processo chega ao fim? Deve ser declarado sempre inválido, mesmo posteriormente? Em outras palavras: Poder-se-ia ir tão longe como considerar causa de nulidade a falta de um pressuposto processual? Ou na falta de qual deles corresponde este efeito? Quais impedimentos processuais são — para usar uma comparação aproximada — impedimenta dirimentia; quais são somente impedimentia? Onde se encontra o critério para uma distinção semelhante? Somente com a resposta a estas perguntas conseguirá a teoria das nulidades um fundamento seguro”. [7]
Nada obstante, como havia consignado, a consunção processual, até então, é vista sob a perspectiva do beneficiado pela extinção anômala do processo, considerando, obviamente, a sentença de mérito a ser prolatada. Está é a dicção do artigo 249, § 2º, do Velho do CPC e do artigo 257, § 2º, do Novo CPC.
Pois bem, o Novo CPC, no referente aos recursos augustos e angustos, rompe com esse liame, eis que permite o conhecimento do recurso tempestivo interposto, embora claudique na regularidade, independentemente do resultado do seu julgamento.
Sem dúvida, isso é algo de novo[8].
Nesse quadrante, o vício seria desconsiderado — consumido — conhecendo-se o recurso e julgando seu mérito, sem qualquer consideração ou ligação entre o beneficiado pelo descompasso e o resultado do julgamento.
Portanto, apesar da regra geral da consunção processual entesourar o vício e o resultado do julgamento (artigo 257 do Novo CPC), nos recursos especiais e extraordinários aquela ligação é cortada, prescindindo-se da mesma. O eventual beneficiado pela existência do descompasso processual (recorrido) poderá ver o recurso conhecido e provido contra seus interesses.
Em sendo assim, a consunção processual opera no recurso especial e extraordinário com maior vigor, alheia a perquirições sobre o resultado do julgamento da pretensão recursal. Resta esperar a interpretação que será conferida ao preceptivo proposto, notadamente sobre o “defeito formal que não se repute grave”.


[1] Designaremos o projeto de Novo Código de Processo Civil, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número 8046/2010 (Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831805.pdf Acesso em: 8 abr. 2011) , com  a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”
[2] Discutir-se-á sobre os vícios eventualmente passíveis de consumição (pressupostos, requisitos e etc.).
[3] “Este dualismo sempre foi decisivo na classificação do procedimento judicial. Ele levou a uma divisão do processo em dois capítulos, dos quais um se destina à investigação da relação litigiosa material e o outro, ao exame dos pressupostos processuais. Assim, no processo civil romano precede ao trâmite de mérito (o procedimento in judicio) um trâmite preparatório (in jure), o qual estava destinado exclusivamente à determinação da relação processual, ad constituendum judicium (a constituir um juízo). (BÜLLOW, Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais). Obviamente, o argumento engendra uma incorreção histórica, há muito objeto de glosa, pela inexistência, já no direito romano, de separação rígida entre tais fases.
[4] Reputo melhor enquadrar os pressupostos processuais e as condições da ação na categoria do juízo de admissibilidade do processo, contrapondo-os, na medida do possível, ao juízo de mérito (DIDIER, Pressupostos processuais e condições da ação).
[5] CARVALHO, Teoria dos pressupostos e dos requisitos processuais.
[6] SOUZA, Miguel Teixeira, Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais.
[7] BULLOW.
[8] Frise-se, no artigo citado, MIGUEL TEIXEIRA se refere ao acolhimento das teses de RIMMELSPACHER por certa jurisprudência alemã, atrelada a admissibilidade recursal, mas sempre considerando os elementos do processo a apontar a improcedência do recurso interposto.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Embargos Declaratórios - Prequestionamento Virtual - Efeito Integrativo - Novo CPC

Dizer que o recurso de embargos de declaração tem tônus integrativo, pois visam complementar a decisão, não é nada novo, nem justificaria nossa atenção.
Mas aqui o título remete a tema distinto.
O Novo CPC[1] estabelece expressamente um novo efeito, além dos tradicionais (v.g. obstativo, devolutivo, suspensivo, translativo), aos aclaratórios, efeito que convenciono designar como integrativo — efeito integrativo.
O artigo 979 do projeto, concernente ao recurso expletivo, explicita: “Art. 979. Consideram-se incluídos no acórdão os elementos que o embargante pleiteou, para fins de prequestionamento, ainda que os embargos de declaração não sejam admitidos, caso o tribunal superior considere existentes omissão, contradição ou obscuridade".
Eis o ponto. O preceptivo estipula que a interposição dos declaratórios prequestionadores, ainda quando não acolhidos, implica na inclusão virtual dos argumentos suscitados no acórdão recorrido, tudo a viabilizar o manejo do recurso especial e extraordinário.
Assim, apresentados os augustos e angustos recursos, a ausência de debate explícito das violações aos dispositivos (infra)constitucionais no acórdão recorrido estaria, por elipse, superada pela interposição de declaratórios, isto é, pelo novel efeito integrativo imanente a tal espécie recursal.
Efeito integrativo porque atrelado ao simples fato processual de ter sido interposto o recurso de embargos para prequestionamento, no que não é objeção suficiente, a autonomia do conceito, a necessidade do Tribunal Superior verificar a omissão do juízo a quo.
Na minha opinião, é de somenos importância a questão da confirmação pelo Tribunal Superior da existência de omissão, contradição ou obscuridade. Ora, se o Tribunal Superior entender que o acórdão já tinha analisado a matéria excogitada nos declaratórios, pelo que ausentes vícios, o prequestionamento estará presente e não mais virtualizado.
Noutra linha, poder-se-ia cogitar de um efeito devolutivo qualificado, como se ao Tribunal Superior restasse devolvido, além da pretensão recursal especial ou extraordinária, o objeto do recurso de embargos anteriormente aviados — duplo e escalonado juízo revisório. Não acredito que assim o seja. A parte final do artigo 979 vitaliza verdadeira norma de encerramento lógico do dispositivo.
Bem, semelhantemente, descabe pressionar a situação para lhe enquadrar nas balizas do dito efeito translativo do recurso especial e extraordinário, robustecido pelo disposto no artigo 988 do projeto. Pois bem, a integração virtual do acórdão recorrido, para fins de prequestionamento, tem como causa eficiente a agitação dos declaratórios. Entendimento diverso dispensaria o próprio dispositivo.
Dito às claras e às secas, o Novo CPC atribui efeito integrativo aos embargos declaratórios, imediatamente decorrente da sua interposição com o fim de prequestionamento.
Seria escusado dizer, independentemente da natureza jurídica do instituto albergado no artigo 979 do projeto, este potencial e virtual prequestionamento da matéria excogitada nos declaratórios solve idiossincrasia no sistema atual.
Embora as questões oportunamente suscitadas devam ser enfrentadas no provimento jurisdicional (CPC, artigo 458), prestigiando o devido processo legal[2], cristaliza-se o entendimento de que ao magistrado compete, exclusivamente, exteriorizar as razões pelas quais acolhe ou rejeita a pretensão, prescindindo ao debate das demais questões. Basta apontar o caminho percorrido e o destino alcançado, não sendo necessário apresentar as rotas alternativas ou locais não visitados[3].
Ainda que o direito seja um caleidoscópio, essa perspectiva em particular, por vezes, asfixia o sistema recursal, estabelecendo um verdadeiro impasse. Apesar da parte apontar oportunamente a violação a determinado dispositivo (infra)constitucional, repristinando o argumento em sede de declaratórios, o juízo a quo nega o seu debate, sob o argumento de não estar jungido a responder todos os questionamentos formulados. Neste contexto, salvo entendimento sobre prequestionamento implícito, o recurso não será conhecido, mormente no Superior Tribunal de Justiça (Enunciado de Súmula nº 211).
Observe-se, a apontada violação ao ordenamento jurídico não será apreciada pelo órgão de cúpula vocacionado ao seu debate e uniformização pela renitência do Tribunal anterior em lhe dar, pelo menos, atenção.
Por conta disso, tem-se multiplicado exponencialmente os especiais aviando, como tópico, a violação ao artigo 535 do Código de Processo Civil, permitindo assim ao Tribunal Superior, verificada a ausência do prequestionamento, determinar o retorno dos autos para o debate da questão suscitada nos aclaratórios[4].
Deste modo, bem andou o anteprojeto ao dar adequada profilaxia a tal esquizofrenia do sistema, atrelando ao recurso de embargos de declaração efeito integrativo, para considerar virtualmente prequestionada a matéria ventilada.


[1] Designaremos o projeto de Novo Código de Processo Civil, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número 8046/2010 (Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831805.pdf Acesso em: 8 abr. 2011) , com  a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”
[2] O voto vencedor do Ministro Gilmar Ferreira Mendes equacionou de maneira contundente: “Não é outra a avaliação do tema no direito constitucional comparado. Apreciando o chamado Anspruch auf rechtliches Gehör (pretensão à tutela jurídica) no direito alemão, assinala o Bundesverfassungsgericht que essa pretensão envolve não só o direito de manifestação e o direito de informação sobre o objeto do processo, mas também o direito do indivíduo de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão incumbido de julgar (Cf. Decisão da Corte Constitucional alemã — BVerfGE 70, 288-293; sobre o assunto, ver, também, PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Grundrechte - Staatsrecht II. Heidelberg, 1988, p. 281; BATTIS, Ulrich; GUSY, Christoph. Einführung in das Staatsrecht. 3. ed. Heidelberg, 1991, p. 363-364). Daí afirmar-se, correntemente, que a pretensão à tutela jurídica, que corresponde exatamente à garantia consagrada no art. 5o, LV, da Constituição, contém os seguintes direitos: 1) direito de informação (Recht auf Information), que obriga o órgão julgador a informar à parte contrária dos atos praticados no processo e sobre os elementos dele constantes; 2) direito de manifestação (Recht auf Äusserung), que assegura ao defendente a possibilidade de manifestar-se oralmente ou por escrito sobre os elementos fáticos e jurídicos constantes do processo; 3) direito de ver seus argumentos considerados (Recht auf Berücksichtigung), que exige do julgador capacidade, apreensão e isenção de ânimo (Aufnahmefähigkeit und Aufnahmebereitschaft) para contemplar as razões apresentadas (Cf. PIEROTH; SCHLINK. Grundrechte -Staatsrecht II. Heidelberg, 1988, p. 281; BATTIS; GUSY. Einführung in das Staatsrecht. Heidelberg, 1991, p. 363-364; Ver, também, DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, no 85-99). Sobre o direito de ver os seus argumentos contemplados pelo órgão julgador (Recht auf Berücksichtigung), que corresponde, obviamente, ao dever do juiz ou da Administração de a eles conferir atenção (Beachtenspflicht), pode-se afirmar que ele envolve não só o dever de tomar conhecimento (Kenntnisnahmepflicht), como também o de considerar, séria e detidamente, as razões apresentadas (Erwägungspflicht) (Cf. DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIGi. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, no 97). É da obrigação de considerar as razões apresentadas que deriva o dever de fundamentar as decisões (Decisão da Corte Constitucional — BVerfGE 11, 218 (218); Cf. DÜRIG/ASSMANN. In: MAUNZ-DÜRIG. Grundgesetz-Kommentar. Art. 103, vol. IV, no 97).” (STF, MS 24268, relator para o Acórdão  Ministro GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2004).
[3] Por certo pela repetição da doutrina de CARNELUTTI sobre questões: “portanto, a motivação deve se adequar, mais do que às alegações das partes, às questões do litígio.” (CARNELUTTI, Sistemas de direito processual civil).
[4] O processo não pode trasmudar num jogo de cartas, como agudamente observou GAJARDONI. No ponto, as partes guardam a carta do artigo 535 para a hipótese do Tribunal não comprar às demais.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Novo CPC[1] e a Carência de Ação


Sem a pretensão de emular com o bem escrito[2] post[3] do ilustre doutrinador José Miguel Garcia Medina (@profmedina), muito mais para retomar um curto debate travado no twitter, envolvendo também o ilustre doutrinador Luiz Dellore (@dellore), apresento algumas considerações sobre a carência de ação no Novo CPC.
No referido post, parte o doutrinador do pressuposto de que o Novo CPC teria dado tratamento diverso ao instituto da carência de ação, quiçá em coerência com perspectiva da teoria da asserção (in status assertionis).
Assim, após traçar lindes entre a sentença que rejeita a pretensão por carência de ação e aquela que lhe dá a tarja de improcedência, acentuando a maior gravidade da primeira, o emérito doutrinador assenta que o Novo CPC teria percebido tal realidade, na linha do artigo 473, caput, e § 1º. Ademais, o Novo CPC teria excluído a possibilidade jurídica das condições da ação, inserindo nas hipóteses de improcedência liminar do pedido (artigo 307).
Oportuno se torna dizer, a teoria da asserção é uma saída elegante e muito útil ao problema criado pelo acolhimento, por parte do legislador processual, da teoria eclética da ação, formulada por LIEBMAN.
Sem dúvida, a teoria eclética há muito sofre reparos pela vã tentativa de eliminação dos insuprimíveis vínculos de ligação entre direito material e processo (OVÍDIO BAPTISTA), pela compreensão dos fatos reais pelo caleidoscópio da ficção (FÁBIO GOMES).
Calmon de Passsos já havia denunciado o concretismo dissimulado de Liebman, enquanto Ovídio Baptista apontava uma perigosa aproximação da doutrina eclética com a de direito concreto de ação.
A bem da verdade, a análise das ditas condições da ação redunda na incursão do mérito da demanda. Dizer que ausente uma das condições da ação é o mesmo que julgar improcedente o pedido.  Por exemplo, obstar pedido de indenização por ilegitimidade passiva ad causam é o mesmo que assentar que a parte não perpetrou a ação culposa motriz do dano.
Assim, como o encadeamento de relações de direito material e processual só se faria possível mercê de raciocínios hipotéticos, a teoria da asserção propugna uma nova perspectiva na análise das condições da ação. Estas seriam utilizadas como fator de economia processual, devendo seu cotejo ser realizado sem qualquer incursão no mérito, com base na descrição da pretensão[4].
Dito isso, conquanto seja adepto da teoria da asserção[5] — por necessidade de compreensão do sistema posto —, penso que o Novo CPC não lhe deu guarida.
Isso porque, em linhas gerais, no trato da matéria, o Novo CPC (artigos 17, 305, 327 e 472), repete a disciplina do Velho (artigos 3º, 295, 301 e 267), ou seja, a boa e velha carência de ação, independentemente do momento da sentença e da forma de apreciação, implicará em sentença prolatada sem resolução de mérito.
Além do mimetismo do regime vigente, sem muitas inovações, a ilação é reforçada pelo fato de que o artigo 472 estabelece, genericamente, a sentença sem resolução de mérito quando verificada a ausência de legitimidade ou de interesse processual.
Impende observar criticamente, se a teoria das condições da ação, com a roupagem da asserção, fosse acolhida pelo Novo CPC, existiria uma aproximação de redação entre o disposto no artigo 305 com o artigo 472 do projeto, a fim de que clausuladas expressões genéricas — “manifestamente”, “verificado de plano”, “sem a necessidade de dilação probatória” —, para todas as hipóteses de carência de ação e sentença sem resolução de mérito. Aí sim, não sendo manifesta, verificada após revolvimento da matéria ou com dilação probatória, a sentença se daria com resolução de mérito (artigo 474).
De outro norte, de fato, o Novo CPC deixou de trabalhar com a possibilidade jurídica do pedido como condição da ação, como, aliás, o próprio LIEBMAN propugnou posteriormente na 2ª edição do seu manual de direito processual civil, ao alargar o conceito de interesse agir.
Penso ter sido acertada a exclusão. Porém, não comungo da visão de que a impossibilidade jurídica do pedido sempre levará a improcedência liminar do pedido (artigo 307 do Novo CPC), eis que esta hipótese tem enlaçamento umbilical com a uniformização jurisprudencial, não abrangendo todas as situações antes reconduzíveis aquela tipologia.
Verdadeiramente, como acolhida a teoria eclética, boa a disposição do artigo 473, § 1º, do Novo CPC, que veda a possibilidade de propositura de nova demanda sem sua correção.  A regra dá cabo à esquizofrenia de se ficar repetindo o ingresso da mesmíssima demanda, anteriormente já extinta (artigo 268 do Velho CPC), esperando juízo positivo de admissibilidade, talvez pela substituição do magistrado.
Em sendo assim, penso que o Novo CPC, ainda que tenha avançado na matéria em comparação com o Velho CPC, não se desvinculou da teoria eclética do direito de ação, nem muito menos se aproximou da teoria da asserção.


[1] Designaremos o projeto de Novo Código de Processo Civil, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número 8046/2010 (Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831805.pdf Acesso em: 8 abr. 2011) , com  a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”
[2] O elogio é sincero. Não é fruto da prática de elogiar para, em passo seguinte, estar licenciado à crítica. A prática ensina que as loas a sustentação oral são o prelúdio da rejeição dos argumentos articulados.
[4] “O exame das condições da ação deve ser feito ‘com abstração das possibilidades que, no juízo de mérito, vão deparar-se o julgador: a de proclamar existente ou a de declarar inexistente a relação jurídica que constitui a res in iudicium deducta’; vale dizer, o órgão julgador, ao apreciá-las, “considera tal relação jurídica in statu assertionis, ou seja, à vista do que se afirmou.” (KAZUO WATANABE).
[5] Não nos preocupa a inquietação de FÁBIO GOMES com o silogismo perfeito, utilizado pelo autor para tornar admissível à tutela jurisdicional, o que levaria com isso a “desastrosa conseqüência de bastar ao autor da demanda mentir para adquirir o direito à jurisdição”. Tal atitude pode e deve ser sancionada (artigo 17 do Código de Processo Civil).

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Novo CPC e a sobrevivência da exceção de incompetência relativa

Ex cuaqunque causa ad Praetorem in jus vocatus venire debet, ut hoc ipsum sciatur, an jurisdictio ejus sit[1]

Bom é dizer, um dos temas que será recorrente neste espaço é o anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, atualmente em trâmite no Congresso Nacional, mais precisamente na Câmara dos Deputados.
Afora a magnitude do tema, diploma voltado a debelação, por assim dizer, da grande maioria de conflitos que se apresentam na arena jurisdicional, o anteprojeto é atualmente objeto de amplo debate, inclusive no twitter — tag #NovoCPC.
Como se prega aqui e acolá, o Novo CPC nasce impregnado pela ideologia da aceleração na prestação jurisdicional, objetivo mirado por sua ilustre Comissão elaboradora, o que, como sói de ser, repercutiu na sua conformação estrutural.
Verdade seja, resultado daquela diretriz, já na primeira reunião da Comissão, decidiu-se pela aglutinação na contestação de matérias antes afetas a outros invólucros (v.g. exceções, impugnações, incidentes e etc.). A contestação — por sua abrangência, melhor seria designar resposta, eis que passou a abarcar as questões alinhadas em tal título no Código vigente —, virou o continente de toda matéria de defesa, razão porque não remanesceria a exceção de incompetência relativa.
Nada obstante, mais por mérito de texto relativo à viva controvérsia sobre o decreto legislativo nº 28, de 4 de março de 2010, que tornou a partir desse ano obrigatória em alguns casos a mediação na Itália[2], constatei, no ponto, uma aporia na proposta do Novo CPC, a ser objeto de imediata atenção, sob pena de se reviver pela práxis o que a pena do legislador tenta riscar, especificamente a exceptio fori.
Ora bem, pelo anteprojeto, a incompetência relativa será articulada em preliminar da contestação (artigos 64 e 327), cujo momento procedimental de apresentação é o quinquídio posterior ao término da fase conciliatória.
Por oportuno, observe-se, o anteprojeto estatuiu no capítulo V do Título I do Livro II — Processo de Conhecimento e Cumprimento de Sentença —, estádio processual para realização de conciliação, através de conciliador ou mediador.
Portanto, verificada a aptidão da exordial e a viabilidade da pretensão (artigo 323), será designada audiência de conciliação, a cujo comparecimento estão premidas as partes pelo engendramento de verdadeiro dever processual, já que a ausência injustificada é considerada ato atentatório da justiça e sancionada com multa (artigo 323, § 6º).
Deveras, possível a qualquer das partes manifestar seu desinteresse, observado o prazo mínimo de dez (10) dias, na composição amigável, ao que se seguirá a abertura do prazo de resposta (artigo 324, § 2º), em conduta não desabonadora da justiça (artigo 323, § 5º).
Contudo, cogite-se, na hipótese de incompetência relativa — bem absoluta pela distância territorial desse país continental (o vocábulo absoluto é utilizado para vincar a questão, sem qualquer paralelo com a disciplina processual) —, em que a parte se veja impossibilitada de comparecer a audiência pela própria incompetência (distância do juízo, custos de deslocamento e etc.), a questão assume forte colorido.
Nesta hipótese, que não orça com o impossível e de fácil verificação, a parte pode ter interesse na realização da conciliação, pelo que não pretende acionar a regra do § 5º do artigo 323 do projeto. Mesmo porque, acionando esse preceptivo, teria que apresentar contestação, para depois eventualmente participar de audiência conciliatória. Esse sinceramente não parece o espírito imbuído pela Comissão no projeto ao trazer a audiência de conciliação para o umbral do processo, momento em que, presume-se, pelo pouco desdobramento processual realizado, as partes estão mais afeitas, predispostas, a composição.
Poder-se-ia projetar então que a parte se faria representar na audiência, como permite o § 8º do artigo 323. Além das dificuldades de se achar um preposto num local distante, aquela pode ter o desejo, como ocorre em regra, de participar do ato conciliatório, o que afasta, por completo, a projeção.
Noutro giro, mas ao redor do mesmo epicentro, possível apresentar imediatamente a contestação, no próprio local de domicílio (artigo 64), articulando a incompetência relativa e postulando a realização de audiência de conciliação no juízo competente. O pedido de realização da audiência de conciliação seria necessário, já que, conquanto sempre presente a possibilidade de sua realização (artigos 118, inciso IV, e 145), na estrutura processual propugnada não existe mais a audiência preliminar, razão porque nova oportunidade de conciliação somente no início da audiência de instrução e julgamento (artigo 344), acaso o feito não tenha sido interrompido anteriormente pelo julgamento da lide ou imediato da lide (artigos 340 e 341).
Novamente, como já dito, penso não ser esta a melhor solução, nem muito menos se coaduna com o objetivo da Comissão ao antecipar procedimentalmente à realização da fase de conciliação.
Por certo, na prática, a situação encontrará resposta no revival da exceção de incompetência. As partes apresentaram petição apartada sobre a incompetência relativa, quiçá com a tarja de exceção, pedindo sua declaração antes da audiência e a realização posterior da conciliação no juízo competente. Ademais, a superação encontra paralelo na disciplina do artigo 126 do projeto, relativo ao impedimento e a suspeição.
Deste modo, mantendo-se a linha alvitrada pela Comissão, penso que o projeto deveria ser alterado, estabelecendo-se novo parágrafo ao artigo 323, para que a audiência seja cancelada pela apresentação de pedido de declaração de incompetência, com a redesignação após seu julgamento positivo ou negativo.


[1] “De qualquer causa o chamado a julgamento deve acudir ao pretor, para que se saiba isto mesmo, se a jurisdição é ou não dele”.