Jurídico

quarta-feira, 8 de junho de 2011

RÉQUIEM SOBRE COISA JULGADA: COISA INSEGURA

Na esteira de recente pronunciamento do Supremo Tribunal Federal, no recurso extraordinário nº 363889, enfocando o tema da “relativização” (desconsideração) da coisa julgada, enveredo, mais uma vez, por tema que enfeixa o direito constitucional e o processual civil.
Seria escusado dizer, o tema não é novo, objeto de inúmeros estudos, diversos enfoques, díspares conclusões, um sem número de títulos, tudo a aconselhar distanciamento da vexata quaestio.
Ainda assim, sem pretensão de exaurimento, penso que a matéria merece, para além do que vem sendo dito, algumas inflexões, principalmente ligadas à própria, esperada e almejada, segurança jurídica.
A necessidade de segurança jurídica, estabilidade, é uma das justificativas para a própria existência do direito, no que permite, num processo de previsão e conhecimento antecipado, saber quais condutas são aceitáveis — padrões de conduta jurídica.
Numa perspectiva ou sob o prisma processual, possibilita que as partes saibam de antemão, por assim dizer, qual delas será assistida pela força estatal (proteção jurisdicional) em determinada situação — anúncio de força (CALAMANDREI).
Mais aí vem o estado de guerra (GOLDSCHMIDT), momento em que todos os direitos estão na ponta da espada, assumindo o direito a condição de medida para o juiz, para ao fim novamente a situação ser galvanizada pela segurança jurídica, com a produção da coisa julgada.
Obviamente, essa descrição sobre o processo de desenvolvimento da segurança jurídica peca pela generalidade e ausência de aprofundamento, mas bem ilustra a necessidade e a posição da coisa julgada.
A coisa julgada no sistema é um tópos da segurança jurídica e, por isso, não tem compromisso com a dita verdade, mas em substituir esta. Cientes de que o descobrimento da verdade, em todos os casos, é impossível, o sistema passa a buscar resultado diverso.
Não por outra razão, que se estabelecem regras de julgamento para insuficiência das provas, vedando-se o juramento pela obscuridade da causa (sibi non liquere[1]), como ocorreu em algum momento no processo romano.
O eixo de gravidade da jurisdição deixa de ser a justiça e a correção da decisão, para passar ao processo, sendo a observância deste o pendor de legitimidade do provimento jurisdicional, como agudamente observou LUHMANN.
Essa concepção foi reforçada pela constatação de que, por vezes, o julgador, de acordo com conhecida alegoria, está num quarto escuro com uma lanterna na mão, guiando-se pela indicação das partes no perscrutar o fato histórico que lhe é submetido. E aí tanto o facho quanto a intensidade da luz tem íntima relação com a atividade processual das partes.
Assome-se, ademais, a concepção de que a atividade julgadora não se reconduz a mero silogismo, sendo dotado de um quê de novidade.
Dito às claras e às secas, a coisa julgada tem compromisso com a segurança jurídica.
A construção da ação declaratória, tão importante para estabelecimento da autonomia do direito de ação (WACH), é a demonstração do comprometimento da coisa julgada com a segurança jurídica, eis que esta é o principal objetivo daquela.
Não por menos, a Constituição, além de estabelecer a segurança com vértebra do corpo constitucional (CRFB/88, artigo 5º) — algo perfeitamente extraível do dístico “Estado de Direito” —, ao trabalhar com os produtos da segurança jurídica inseriu a coisa julgada (CRFB/88, artigo 5º, inciso XXXVI).
Interessante notar, os dois primeiros produtos da segurança jurídica — direito adquirido e ato jurídico perfeito — são adjetivados com expressões atreladas a sua juridicidade, pelo que não se aperfeiçoam frente uma inconstitucionalidade, já que não se teria direito adquirido e, muito menos, perfeição no ato jurídico.
À sua vez, a coisa julgada não tem qualquer qualificação ou adjetivos ligados a (des)conformidade com o direito, não é qualificada como justa ou injusta, sendo um valor em si mesmo.
A coisa julgada trabalha num plano diverso. Não pressupõe sua correspondência com a verdade, realidade, ao direito infraconstitucional ou constitucional, mas simplesmente que o caso tenha sido julgado definitivamente. O instituto da repercussão geral é uma boa prova, expressivo de que o sistema se alheia a questões de violação constitucional não transcendentes.
Portanto, a coisa julgada está ligada essencialmente ao interesse público de que as divergências sociais intestinais tenham um fim, que se legitima pela oportunidade das partes contribuírem para o resultado do processo.
Pois bem, formada a coisa julgada, verdadeira ou falaciosa, certa ou errada, constitucional ou inconstitucional, a coisa se impõe porque julgada definitivamente, por ser produto final da atividade jurisdicional. A partir daí, sobre essa coisa julgada se desdobram novas relações jurídicas, planificam-se direitos.
Nesta linha de inteligência, independentemente dos nobres propósitos que lhe anima, evidente a incorreção do raciocínio que permite a relativização ou desconsideração da coisa julgada, para que se faça justiça no caso concreto.
E, para mim, não salva o argumento da ponderação de valores, as pautas da proporcionalidade ou razoabilidade, com o manejo, cada vez mais frequente, da dignidade da pessoa humana, como elemento balizador de toda e qualquer escolha jurisdicional.
Como bem observou o Ministro DIAS TOFFOLI, embora em voto incorreto (na minha visão), a dignidade da pessoa humana não é panaceia de todos os males[2].
Mesmo porque, a dignidade da pessoa humana pode igualmente justificar o raciocínio contrário ao do julgamento. Sustentar-se que é ofensivo à dignidade da pessoa humana o perene estado de incerteza que é ocasionado com a desconsideração da coisa julgada.
Tanto é assim, que o Ministro FUX, em verdadeiro contorcionismo jurídico, com todas as vênias de estilo, trincou a coisa julgada por esta estar mais distante da dignidade da pessoa humana do que o direito a identidade genética[3]. A dignidade da pessoa humana seria o sol, orbitando a identidade genética no lugar de Mercúrio, enquanto a coisa julgada seria Plutão (para ficar nos planetas mais conhecidos do sistema solar)[4].
Noutro giro, mas ao redor do mesmo epicentro, a desconsideração da coisa julgada embute ainda o perigo de olhar com as lentes de hoje o que foi visto com óculos no passado. O direito muda, por vezes silenciosamente, pelo que as categorias ou conceitos jurídicos, notadamente indeterminados, passam por alterações de sentido e, principalmente, de alcance.
Dificilmente um provimento jurisdicional do passado, tido a época como adequado, passaria incólume por juízo exercido no presente. A desconsideração da coisa julgada pode engendrar o perigo de reescrever a caneta o texto redigido a lápis.
Digno de nota, ainda, que o mesmo Supremo que vem acertadamente protegendo o princípio da segurança jurídica, da proteção à confiança, foi o que aplicou duro golpe contra o núcleo duro daquele princípio, isto é, a coisa julgada.
Singular igualmente repetirmos, em vazia cantilena, a legitimação pelo procedimento, o aspecto criativo do provimento, as contingências da atividade jurisdicional, e fiquemos, por vezes, igualmente tentados a implodir a coisa julgada para lhe afeiçoar a verdade, como se esse fosse o fim desta (coisa julgada).
Posta assim a questão, a coisa julgada não deve ser desconsiderada, relativizada ou esmaecida, eis que é uma garantia constitucional cuja resistência protege a segurança jurídica, valor indispensável à existência e racionalidade do ordenamento jurídico e, por que não dizer, ao próprio reconhecimento da dignidade da pessoa humana.
Tangencialmente, com isso não pretendo amesquinhar a gravidade das situações estratificadas em processos debatendo a relativização da coisa julgada. Os postulados jurídicos somente são verdadeiramente testados quando implicam em graves consequências e não nas hipóteses que chancelam bons motivos.
Em sendo assim, é de se dar relevo a vontade constitucional de proteção da coisa julgada[5], nada se ganhando com seu eclipsar pela relevância de determinadas situações desdobradas na realidade processual.



[1] A expressão non liquet, ou melhor suas iniciais N.L., eram usadas pelos Juízes romanos ao tempo da República (449-31 a. C.), quando do julgamento da questão manifestavam-se não suficientemente esclarecidos. Ao votarem nessa hipótese, apunham-nas em pequenas tábuas que traziam essas siglas, ou as letras A (absolvo) C (condeno). No caso de pronunciamento pelo non liquet, procediam-se a novos debates várias vezes seguidas. Era maneira de mostrar falta de convencimento necessária para o julgamento, como resultado da prova levada a efeito.
[2] “Creio ser indispensável enaltecer a circunstância da desnecessidade da invocação da dignidade humana como fundamento decisório da causa. Tenho refletido bastante sobre essa questão, e considero haver certo abuso retórico em sua invocação nas decisões pretorianas, o que influencia certa doutrina, especialmente de Direito Privado, transformando a conspícua dignidade humana, esse conceito tão tributário das Encíclicas papais e do Concílio Vaticano II, em verdadeira panacéia de todos os males. Dito de outro modo, se para tudo se há de fazer emprego desse princípio, em última análise, ele para nada servirá. Não se pode esquecer o processo de deformação a que foi submetida a cláusula gera da boa-fé na jurisprudência francesa, a ponto de seu recurso excessivo implicar por fazer cair no descrédito essa importante figura jurídica.” (Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363889.pdf Acesso em: 07-jun-2011).
[3] “Não é possível negar, como se assentou mais acima, que também a coisa julgada guarda relação com o princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que concretiza o princípio da segurança jurídica, assegurando estabilidade e paz social. Porém, tal conexão apresenta-se em grau distinto, mais tênue e, portanto, mais afastada do núcleo essencial37 do princípio da dignidade da pessoa humana do que o peso axiológico que, somados, ostentam os direitos fundamentais à filiação (CF, art. 227, caput e § 6º) e a garantia fundamental da assistência jurídica aos desamparados (CF, art. 5º, LXXIV). E é por esta razão que a regra da coisa julgada deve ceder passo, em situações-limite como a presente, à concretização do direito fundamental à identidade pessoal.” (Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE363889LF.pdf Acesso em: 07-jun-2011).
[4] O professor CANOTILHO atribui a Constituição um brilho autônomo, diretamente ligado ao seu processo de formação e posição de suas normas.
[5] ““b) Um ótimo desenvolvimento da força normativa da Constituição depende não apenas do seu conteúdo, mas também de sua práxis. De todos os partícipes da vida constitucional, exige-se partilhar aquela concepção anteriormente por mim denominado vontade de Constituição (Wiile zur Verfassung). Ela é fundamental, considerada global ou singularmente. Todos os interesses momentâneos — ainda quando realizados — não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que sua observância revela-se incômoda.” (HESSE, A força normativa da Constituição, p. 22).

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Delação Anônima

Escrevemos este post há algum tempo[1], mas decidimos dar-lhe publicidade depois de passados os ventos do furacão que removeu as estruturas da operação cognominada como “Castelo de Areia”.
Isso porque, não pretendo justificar a decisão prolatada no habeas corpus nº 137.349, relatado pela Ministra Maria Thereza de Assis Moura, da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça[2], nem muito menos trabalhar com qualquer situação concreta.
Diversamente disso, tratamos abstratamente da delação anônima, considerando-a como notícia de infração criminal, cuja eficácia deve ser aferida pelo seu conteúdo e elementos que eventualmente lhe acompanhem.
O debate se dá na zona cinzenta de compatibilização entre diversos postulados constitucionais, dentre outros, a dignidade da pessoa humana[3], o resguardo aos sigilos, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, a vedação ao anonimato, a moralidade pública.
Zona cinzenta porque não se trata mais da mecânica aplicação deste (branco) ou daquele princípio (preto), mas daquelas situações de miscigenação entre eles, onde as matizes ora escurecem, ora ficam esquálidas, pela tonalidade com que o princípio entra no quadro posto à apreciação.
Melhor dizendo, no ponto, incidem diversos princípios que mutuamente se amoldam, pela sua densidade respectiva, impondo-se sua harmonização.
Bom é dizer, nessa clivagem constitucional, pensamos que a solução conferida atualmente pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça a matéria é absolutamente adequada. Os precedentes apontam para a irregularidade de uma investigação pautada pela devassa telefônica e fiscal quando arrimada exclusivamente em delação anônima.
Não se propugna, obviamente, o desprezo as denúncias anonimamente ventiladas. Essas sem dúvida são importantes veículos de notícia dos fatos criminosos, sendo que, nem sempre, a forma utilizada visa encobrir uma espúria acusação, mas, por vezes, impedir fundado receio contra represálias.
Noutro giro, o argumento utilizado ad terrorem, de que tal entendimento implicaria no esvaziamento do poder de investigação, mormente em flagrante delitos, não orça com a realidade, não ultrapassando as fronteiras largas da fantasia. Deixemos para o cinema os hard cases em que a prova não pode ser utilizada pela autoridade policial ter irrompido a cena do crime sem mandado.
Há tanto, pensamos, não se chegou em terras brasileiras a aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada — fruits of poisonous tree.
A nosso ver, a denúncia anônima deve ser recebida, processada e conhecida como notícia crime, respaldando o início da investigação (persecutio criminis), mas não pode, todavia, implicar, só por si, em quebra dos sigilos constitucionalmente protegidos, como primeira e única medida investigatória. Mais que isso, com todas as vênias de estilo, a denúncia não pode sequer ser conhecida quando destituída de um mínimo apoio probatório.
Dito às claras e às secas, não se pode agasalhar o denuncismo irresponsável, não condizente com uma República Democrática de Direito.
Não por outra razão, que o Supremo Tribunal Federal editou a Resolução nº 361, de 21 de maio de 2008, vedando, no inciso II do artigo 5º[4], reclamações, críticas ou denúncias anônimas.
O malbaratamento de qualquer garantia constitucional implica na desvalia da força normativa da Constituição, instituindo um estado de verdadeira esqualidez constitucional, com o consequente esmaecimento de sua força.
Digno de nota, ainda, que a Constituição quando trabalha com os sigilos é justamente para protegê-los, dar-lhes proteção, estatuindo limitações a sua quebra, em dicção, pelo menos, que serve como forte vetor hermenêutico.
Posta assim a questão, a delação anônima não é suficiente ao inicio de investigação acaso desacompanhada de arrimo probatório, sendo que, igualmente, não justifica, per se, a quebra dos sigilos constitucionalmente reservados.


[1] Exceto este parágrafo, que agora redigimos.
[3] A Carta Magna obstaculiza a utilização ou transformação do ser humano em objeto de processos e ações estatais deslegitimadas.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Repetitivos — mandatário infiel — pressão de enquadramento — Novo CPC

Efetivamente, o presente post retoma a temática do anterior, concernente ao instituto da repercussão geral[1], mas agora na toada dos recursos especiais repetitivos do Superior Tribunal de Justiça.
Com a consciência de ser repetitivo (perdoe a corruptela), volto ao ponto por recentíssima notícia do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria[2]. Ainda, digo, a própria notícia resultou em rápido debate no twitter com Leonardo Ribeiro (@leofsribeiro), Fernando Gajardoni (@FGajardoni) e André Roque (@AVRoque), relativamente a jurisprudência corretiva, ofensiva e defensiva. A diversidade do rótulo bem aponta a divergência de opiniões.
Ao propósito, múltiplos recursos especiais sobre idêntica questão de direito (Rechtsfrage), implicam no processamento de alguns (representativos) e, consequentemente, no sobrestamento de outros, devidamente representados por aqueles.
Essa é a sistemática estatuída no artigo 543-C do Código de Processo Civil, cujos excertos expressivos transcrevemos:
“Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo.       
§ 1º Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.        
§ 2º Não adotada a providência descrita no § 1º deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.    
(...).
§ 7º Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem:       
I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou      
II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.    
§ 8º Na hipótese prevista no inciso II do § 7º deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial.”          
Exatamente, a referida notícia dá conta que a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento quanto à impossibilidade do manejo do recurso de agravo de instrumento para trânsito de especial submetido à liturgia dos recursos repetitivos.
Portanto, o recurso sobrestado fica represado no Tribunal a quo a espera do julgamento da questão repetitiva pelo STJ, ao que se seguirá sua não admissão, provimento ou remessa ao Superior Tribunal — neste último caso, para adequar a decisão ao entendimento placitado.
Ë o estado de letargia processual.
Feito o registro, prosseguimos para novamente externar preocupação sobre tal cristalização jurisprudencial, iniciada pelo Supremo na repercussão geral e agora repisada pelo Superior Tribunal nos repetitivos.
Sem esforço, cogitemos: e se um recurso sobrestado sob o rótulo mal acomodado de determinada questão de direito não resistir bem à pressão do enquadramento. O recurso especial sobrestado não está representado naquela questão de direito devolvida ao STJ no recurso dito representativo.
Se o STJ placitar a ótica do STF, fechar-se-á a via da reclamação e do agravo contra a incorreta decisão de sobrestamento da Corte inferior[3], no que a propalada notícia é expressiva.
A lógica dessa jurisprudência corretiva (GAJARDONI) ou ofensiva (ROQUE) é a racionalização da via recursal, a potencialização dos resultados (uma decisão, múltiplos recursos), pelo que descabida — na contramão da mais cartesiana das lógicas — a reanálise dos recursos representados por outras vias.
Nada obstante, o incorreto sobrestamento do recurso especial, por conta de recurso que não lhe representa (mandatário infiel), redunda em usurpação da competência do Superior Tribunal de Justiça, com reflexos na própria e desejada uniformização do direito.
Assim, penso que o melhor caminho é permitir o uso da reclamação para análise pelo Superior Tribunal de Justiça da correção da decisão que sobrestou recurso, a fim de ser averiguada a relação de representação.
Nesta linha, reforço, deve ao Novo CPC ser inserido parágrafo 5º no artigo 991[4], com a seguinte redação: Cabe reclamação ao Presidente do Tribunal competente para julgamento do recurso quando o processo suspenso versar sobre matéria diversa do recurso representativo, cuja decisão será irrecorrível”.


[4] O artigo 942 do projeto não necessitaria de alteração, uma vez que o texto propugnado encontra respaldo no inciso I daquele preceptivo.

terça-feira, 10 de maio de 2011

Repercussão geral — represamento indevido — pressão de enquadramento — Novo CPC

Retorno às tintas sobre um tema que habita uma das interseções entre o direito constitucional e o processual, qual seja, a repercussão geral do recurso extraordinário, pressuposto de conhecimento desta via augusta e angusta.
Em realidade, chamou minha atenção notícia sobre decisão proferida no final do mês transato, que dava conta do não conhecimento de reclamação por suposto equívoco na aplicação, pelo Tribunal de origem, da repercussão geral[1].
Consabido é, existindo multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, enquanto um ou alguns extraordinários representativos ascendem ao Supremo Tribunal Federal, os demais ficam sobrestados até o pronunciamento jurisdicional sobre a questão constitucional posta.
Transcreve-se o artigo 543-B do Código de Processo Civil:
Art. 543-B. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, a análise da repercussão geral será processada nos termos do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, observado o disposto neste artigo.
§ 1º Caberá ao Tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia e encaminhá-los ao Supremo Tribunal Federal, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo da Corte.
§ 2º Negada a existência de repercussão geral, os recursos sobrestados considerar-se-ão automaticamente não admitidos.
§ 3º Julgado o mérito do recurso extraordinário, os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se.
§ 4º Mantida a decisão e admitido o recurso, poderá o Supremo Tribunal Federal, nos termos do Regimento Interno, cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada.
§ 5º O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal disporá sobre as atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos, na análise da repercussão geral.
Assim, a jurisprudência da Suprema Corte consolidou o entendimento de que sobrestado um recurso pela repercussão geral, este fica represado no Tribunal a quo a espera do julgamento da questão representativa pelo STF. Após o que, o recurso será declarado não admitido (eficácia pan-processual[2]), prejudicado, provido ou remetido ao Supremo — neste último caso, para adequar a decisão ao entendimento placitado.
A bem da verdade, o recurso extraordinário sobrestado fica num estado de letargia, como deixa claro o próprio Regimento Interno do STF:
Art. 328-A. Nos casos previstos no art. 543-B, caput, do Código de Processo Civil, o Tribunal de origem não emitirá juízo de admissibilidade sobre os recursos extraordinários já sobrestados, nem sobre os que venham a ser interpostos, até que o Supremo Tribunal Federal decida os que tenham sido selecionados nos termos do § 1º daquele artigo.
§ 1º Nos casos anteriores, o Tribunal de origem sobrestará os agravos de instrumento contra decisões que não tenham admitido os recursos extraordinários, julgando-os prejudicados nas hipóteses do art. 543-B, § 2º, e, quando coincidente o teor dos julgamentos, § 3º.
§ 2º Julgado o mérito do recurso extraordinário em sentido contrário ao dos acórdãos recorridos, o Tribunal de origem remeterá ao Supremo Tribunal Federal os agravos em que não se retratar.
Pois bem, adiantando minha preocupação, e se um recurso sobrestado, sob a tarja de determinada matéria — submetida à repercussão geral —, não resistir bem à pressão do enquadramento, isto é, o recurso trabalhar com especificidades constitucionais suficientes a lhe distinguir daqueles carimbados com aquela tarja[3].
 Reforce-se, o recorrente vê seu recurso sobrestado, submetido ao julgamento em série, a espera de um rótulo, que, todavia, não lhe cai bem, pois a matéria objeto do seu recurso é distinta daquela a ser enfrentada na repercussão geral reconhecida.
Nessa hipótese, temos um recurso extraordinário, versando sobre violação constitucional, que fica empacado indevidamente na origem, ao que se abriria, em tese, a interposição do recurso de agravo de instrumento, levando aquele ao conhecimento do Supremo, ou, então, o expediente da reclamação, para coarctar o incorreto represamento usurpador da competência da Corte Constitucional.
Contudo, o Supremo Tribunal Federal vem negando o manejo das duas vias para os recursos sobrestados na origem, remetendo a problemática à resolução intestinal dos Tribunais de Origem.
Salvo ledo engano, a posição abstencionista do Supremo começou a ser construída no julgamento da questão de ordem em ação cautelar nº 2177[4], quando se assentou que as pretensões cautelares dos processos sobrestados devem ser analisadas pelos Tribunais a quo.
Assim, após algumas decisões vacilantes, como a do saudoso Ministro Menezes Direito, na reclamação nº 7.523[5] — acolhendo reclamação para determinar a análise de recurso extraordinário interposto, já que represado incorretamente —, a toada é a de submissão de tal temática aos tribunais anteriores.
Precisamente, na questão de ordem no agravo de instrumento nº 760.358, relatado pelo Ministro Gilmar Mendes, realizou-se a clivagem atual da matéria, convertendo, ao final, o recurso em agravo regimental, com sua consequente devolução para origem, a fim de que o Tribunal recorrido equacionasse o tema.
Nesse julgamento, o relator consignou expressamente a existência de uma escolha política pela adoção do instituto da repercussão geral, a qual a Suprema Corte deveria dar consequência, abstendo-se de enfrentar o sobrestamento dos recursos pelos Tribunais anteriores.
A obviedade, o relator não negou a possibilidade de situações teratológicas na operação do sistema, mas advoga a existência de mecanismos suficientes para reparação (v.g. coisa julgada inconstitucional é inexigível e enseja ação rescisória) (AI-QO 760.358).
Na mesma linha, colhe-se trecho de voto da Ministra Ellen Gracie na reclamação nº 7.569:
Penso não ser adequada a ampliação da utilização da reclamação para correção de equívocos na aplicação da jurisprudência desta Corte aos processos sobrestados na origem. (...). A análise individualizada da aplicação da jurisprudência firmada por esta Corte no âmbito da repercussão geral acarretará um drástico aumento do número de reclamações a serem apreciadas neste Supremo Tribunal, o que certamente não estará em harmonia com o objetivo pretendido com a criação do requisito da repercussão geral.
O argumento da Corte é sedutor. Se o objetivo da repercussão geral era racionalizar o recurso extraordinário — permitindo a análise da matéria constitucional uma única vez, com a reprodução exponencial do seu resultado para os recursos idênticos —, seria ilógico que o Supremo Tribunal Federal voltasse a analisar esses recursos sob outras vestes (agravos e reclamações). O represamento dos recursos extraordinários desaguaria em agravos e reclamações.
Todavia, penso eu, não ser está à solução mais correta.
Isso porque, o represamento indevido de determinado recurso extraordinário, veiculando questão constitucional distinta daquela representativa e submetida ao Supremo, implica, sem dúvida ou esforço hermenêutico, em usurpação da competência desta Corte para análise de matéria constitucional, propriamente de potencial violação da Constituição, com o subsequente enfraquecimento da força normativa desta[6].
Aliás, percepção diversa embucha uma contradição. Se o Tribunal de origem tem a última palavra sobre o quê está ou não embainhado em determinada repercussão geral, por que não lhe assegurar a última palavra sobre a possibilidade de existência de violação à Constituição no recurso extraordinário, extinguindo no ponto o agravo de instrumento.
Idêntica a resposta: essas matérias tem que necessariamente ser submetidas ao Tribunal jungido do encargo de preservar a Constituição da República, aquele que, para rememorar a constante lembrança de Pertence, tem: "o indesejável privilégio (...) de errar em último lugar" (AI nº 330.977).
Tangencialmente, o Novo CPC infelizmente mantém o quadro atual, embora unificando os regimes do extraordinário e do especial, em seu artigo 991:
Art. 991. Caberá ao presidente do tribunal de origem selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça independentemente de juízo de admissibilidade, ficando suspensos os demais recursos até o pronunciamento definitivo do tribunal superior.
§ 1º Não adotada a providência descrita no caput, o relator, no tribunal superior, ao identificar que sobre a questão de direito já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida.
§ 2º Na decisão de afetação, o relator deverá identificar com precisão a matéria a ser levada a julgamento, ficando vedado, ao Tribunal, a extensão a outros temas não identificados na referida decisão.
§ 3º Os processos em que se discute idêntica controvérsia de direito e que estiverem em primeiro grau de jurisdição ficam suspensos por período não superior a doze meses, salvo decisão fundamentada do relator.
§ 4º Ficam também suspensos, no tribunal superior e nos de segundo grau de jurisdição, os recursos que versem sobre idêntica controvérsia, até a decisão do recurso representativo da controvérsia.
Pelo exposto, o projeto de Novo CPC deve ser alterado, para ser inserido parágrafo 5º no artigo 991[7], com a seguinte redação: Cabe reclamação ao Presidente do Tribunal competente para julgamento do recurso quando o processo suspenso versar sobre matéria diversa do recurso representativo, cuja decisão será irrecorrível”.


[2] “O não-reconhecimento da repercussão geral de determinada questão tem efeito pan-processual, no sentido de que se espraia para além do processo em que fora acertada a inexistência de relevância e transcendência da controvérsia levada ao Supremo Tribunal Federal.” (MARINONI; MITIDIERO, Repercussão geral no recurso extraordinário, p. 55-56).
[3] Situação passível de reprodução na realidade, mormente pela latitude de nosso texto constitucional.
[6] “A Constituição adquire força normativa na medida em que logra realizar essa pretensão de eficácia” (HESSE, A força normativa da Constituição, p. 16).
[7] O artigo 942 do projeto não necessitaria de alteração, uma vez que o texto propugnado encontra respaldo no inciso I daquele preceptivo.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Supremo: par ou ímpar?

Na semana passada, em que o noticiário sobre o Supremo foi dominado pelo julgamento da pertença da vaga de mandato pelo partido ou coligação, chama também atenção decisão do Supremo Tribunal Federal, proferida na ADI nº 4167, em que o impedimento do Ministro Dias Toffoli assumiu relevo ímpar, julgando a Corte em composição par.
O tema também remete ao Recurso Extraordinário nº 631102, sobre a aplicabilidade da lei da ficha limpa, em que nossa Corte Constitucional, então integrada por dez (10) Ministros[1], ante o irremissível empate, manteve, após muita discussão, decisão da Corte anterior (TSE).
Pois bem, no recente julgamento, pelo impedimento do Ministro Dias Toffoli, a Corte se viu manietada, no controle concentrado de constitucionalidade, frente ao empate no Plenário de 5 votos favoráveis e 5 contrários a constitucionalidade de determinado preceptivo, do provimento jurisdicional vinculante (ADI 4167[2]).
Precisamente, na questão referente à jornada dos profissionais de educação, o Supremo, na contingência do empate, proferiu decisão, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, que ficou no meio do caminho. A ação direta foi julgada improcedente, mas, pelo empate na votação, como não alcançada a ilustrada maioria (CRFB/88, artigo 97 — lei nº 9.868/99, artigo 23), o pronunciamento jurisdicional ficou destituído de sua congênita eficácia vinculante.
Seria escusado dizer, no controle objetivo de constitucionalidade, concentrado e abstrato, os provimentos são dotados de enforcing power, com eficácia erga omnes, ainda na hipótese de improcedência, visando, em última analise, manter a supremacia da Constituição.
Não é demais rememorar, a partir da construção que seguiu a Emenda Constitucional nº 3 e da decisão prolatada na ADC nº 1-QO, assentou-se que a ADI e ADC produziriam decisões idênticas, sendo esta designada como ADI de sinal trocado. Essa similitude foi reforçada pela Emenda Constitucional nº 45, tudo a demonstrar que o conhecimento pelo Supremo daquelas ações diretas sempre implica num pronunciamento vinculante sobre (in)constitucionalidade.
Posta assim a questão, a perplexidade decorrente da decisão da ADI nº 4167 é manifesta. Pronunciamento em controle de constitucionalidade que redundou em improcedência de ADI sem eficácia vinculante, haja vista a ausência de uma solução para superação do impasse verificado no julgamento realizado.
O problema está posto. A situação tem o potencial de se repetir. Inúmeras são as hipóteses em que Ministro não possa compor determinado julgamento — apreciando a Corte em composição par —, o que é catalisado pela evidente e acentuada divisão ideológica que impera na nossa Suprema Corte.
Portanto, imprescindível que se construa uma alternativa para tais impasses, sob pena de se repetirem julgamentos em que, por assim dizer, jura-se pela obscuridade da causa (sibi non liquere)[3], alheando-se de definir, definitivamente (a redundância é propositada), temas que estão na agenda do Judiciário, para não dizer do País.
A par disso, penso que a melhor solução é o voto de qualidade do Presidente, sendo a suscitação do artigo 97 da Constituição, como contra-argumento, uma falsa questão.
Para mim, o referido dispositivo constitucional não é malferido pela circunstância de que o voto de qualidade seja considerado para composição da maioria absoluta no joeiramento de (in)constitucionalidade de ato normativo.
O que o preceptivo exige é a composição de maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade de disposição normativa, independentemente da forma como se chegou a tal maioria, matéria normalmente relegada aos regimentos internos das Cortes — ressalvadas indevidas artificializações.
Até porque, noutras hipóteses, esta maioria é igualmente extraída por disposições infraconstitucionais, não sendo claramente aferível pelos votos proferidos, como ocorre, por exemplo, no prevalecimento do dito voto médio — ótica pela qual quem placita o mais acorda com o menor.
De mais a mais, bom que se lembre, o voto de qualidade é atribuído ao Presidente da Corte, ungido democraticamente pelos seus pares, para lhes representar e, inclusive, penso eu, no período de sua investidura, assumir maiores responsabilidades, entre elas, dirimir as divergências.
Não vejo com o voto de qualidade possa ser considerado antidemocrático. O Ministro Presidente é eleito pelos seus pares, para lhes representar, nada mais justo que possa desempatar, em prestígio, inclusive, a função constitucionalmente atribuída ao Supremo de velar pela Constituição.
Alguém dirá que isso envolve o perigo do domínio do ponto de vista do Presidente. Não vejo assim. Nada impede que, em julgamento posterior, a Corte chegue a maioria prescindido do voto de qualidade.
Perigoso mesmo é esse estado de indecisão. Cogite-se, de que adiantou propor a ADI quanto ao parágrafo 4º do artigo 2º da Lei 11.738/2008. A decisão de nada vale, não tem eficácia prática, nem muito menos resolve questão inter partes.
A manutenção do empate é ainda algo de mais grave. Os votos dos Ministros podem ser utilizados isoladamente por quem pretenda (des)cumprir o ato normativo excogitado, dando azo a todo tipo de tergiversações. Pode-se sustentar, a título de exemplo, o ato normativo é inconstitucional, como já reconhecido por 5 Ministros do Supremo.
De toda sorte, ainda que não seja através do voto de qualidade, urge que o Supremo apresente solução para a questão do empate. O vácuo do poder é sempre preenchido[4], pelo que se afigura pernicioso, nesses temas, nada decidir, para a matéria ser resolvida, talvez, num jogo de par ou ímpar.


[1] De todos conhecido o recente celeuma na nomeação para a vaga aberta com a aposentadoria do Ministro Eros Grau no Supremo Tribunal Federal.
[3] A expressão non liquet, ou melhor suas iniciais N.L. eram usadas pelos Juízes romanos ao tempo da República (449-31 a. C.), quando do julgamento da questão manifestavam-se não suficientemente esclarecidos. Ao votarem nessa hipótese, apunham-nas em pequenas tábuas que traziam essas siglas, ou as letras A (absolvo) C (condeno). No caso de pronunciamento pelo non liquet, procediam-se a novos debates várias vezes seguidas. Era maneira de mostrar falta de convencimento necessária para o julgamento, como resultado da prova levada a efeito.
[4] “é preenchido, quase sempre pela atuação de uma outra (veja-se o exemplo do vácuo deixado pelo Poder Judiciário no tratamento dos conflitos de interesses de pequena expressão econômica. Programas de rádio e de televisão, atuação de ‘justiceiros’, e outras manifestações que procuram dar ao povo, com aplauso deste, um arremedo de solução de conflitos, satisfazendo o ideal de justiça que existe na mente do povo, constituem exemplos desse fenômeno de ocupação do vácuo político-social” (WATANABE, Ajuris, vol. 34).

sábado, 23 de abril de 2011

Consunção Processual — Recurso Especial e Extraordinário — Novo CPC

Mais uma vez volto minha atenção ao Novo CPC[1], ao disposto no § 2º do artigo 983, no que permite, na primeira de suas hipóteses, a consunção, por assim dizer, de defeitos formais do recurso especial e do recurso extraordinário.
Transcreve-se, para cotejo, o preceptivo:
“Art. 983. O recurso extraordinário e o recurso especial, nos casos previstos na Constituição da República, serão interpostos perante o presidente ou o vice-presidente do tribunal recorrido, em petições distintas que conterão:         
(...)
§ 2º Quando o recurso tempestivo contiver defeito formal que não se repute grave, o Superior Tribunal de Justiça ou Supremo Tribunal Federal poderão desconsiderar o vício, ou mandar saná-lo, julgando o mérito”
.
Na espécie, em potência, a consunção dos pressupostos processuais (amplamente) sempre esteve estipulada no artigo 249, § 2º, do Velho do CPC, repisada pelo artigo 257, § 2º, do Novo CPC, in verbis:
“Art. 257. Ao pronunciar a nulidade, o juiz declarará que atos são atingidos e ordenará as providências necessárias a fim de que sejam repetidos ou retificados.  
(...).     
§ 2º Quando puder decidir o mérito a favor da parte a quem aproveite a declaração da nulidade, o juiz não a pronunciará nem mandará repetir o ato ou suprir-lhe a falta”.
Feito o registro, anotamos, pelo dístico “consunção processual” queremos designar a possibilidade de ser proferida sentença de mérito ainda que o processo padeça de algum descompasso processual.
Melhor dizendo, na concepção corrente[2], na hipótese de existir no processo vício processual ligado a interesse de uma das partes — que se sagrará vencedora com a prolação da sentença de mérito —, pode o magistrado desconsiderar aquela mácula e exarar sentença.
Circunscrevendo o plano desta maneira, a matéria processual seria consumida pela pretensão de direito material. Utilizando, de maneira invertida, aturado tropo do direito processual, dá-se o sacrifício do direito processual no altar do direito material.
Demais disso, o nó górdio da questão sempre passou pela consideração do beneficiado pela irregularidade patenteada, numa análise metajurídica, projetando o resultado da sentença de mérito a ser prolatada. Por exemplo, quebrar-se-á o contraditório em prejuízo ao demandante, por conta de documento anexado pelo demandado, mas a demanda ainda assim será acolhida, não se decreta a nulidade, passando ao julgamento.
O tema é absolutamente interessante, estando diretamente vinculado à concepção que se tem sobre processo (relação jurídica, situação jurídica, procedimento em contraditório e etc.), principalmente no relativo aos supostos ou pressupostos processuais e sua classificação (existência, validade e eficácia).
Consabido é, o nascimento do direito processual está umbilicalmente ligado a separação dos pressupostos processuais do suposto de fato da relação jurídica de direito material, a partir da obra seminal de BÜLLOW.[3]
A partir daí, passamos a repetir sistematicamente um roteiro pré-estabelecido em que, num primeiro momento, são analisadas questões alheias ao mérito da demanda, para posteriormente, afastadas as primeiras, ser então enfrentada a pretensão de direito material submetida.
Daí surge o escalonamento da cognição judicial em binômios[4], trinômios (triologias) e quadrinômios, como um caminho uniforme a ser percorrido para emanação do provimento jurisdicional. Caminho este, diga-se de passagem, de mão única, primeiro percorrendo os pressupostos processuais, depois as condições da ação e, ao final, o tortuoso mérito.
Porém, com a evolução do direito processual, cada vez mais se apreende que a sentença sem resolução de mérito é um fracasso, como contundentemente adverte DIDIER, ou, ainda, uma forma de morte violenta ou danosa do processo, nos termos de CARVALHO[5]. Convenhamos, sentença que não dê cabo definitivo a pretensão, permitindo sua reedição, nada contribuindo ao desenvolvimento das relações sociais, é um desperdício a ser evitado, mormente quando intensa a atividade processual realizada no processo.
MIGUEL TEIXEIRA DE SOUZA, em artigo dedicado ao tema[6], credita a RIMMELSPACHER a tese de quebrar a relação de condicionalidade existente entre as questões processuais e as mérito, a fim de permitir o enfrentamento destas em prejuízo daquelas. Advirta-se, ainda aqui buscando coincidência entre o beneficiado com a extinção sem resolução e o vencedor pela extinção com resolução de mérito.
Oportuno se torna dizer, o próprio BÜLLOW intuía que a disciplina dos pressupostos processuais merecia uma adequada clivagem, eventualmente a permitir, pela fase do processo, sua desconsideração, talvez consumição.
Peço licença para transcrever:
“Tão logo a falta de um pressuposto processual seja determinada e confirmada no início do procedimento, este se malogra totalmente. Porém, o que ocorre se esta falta não é notada e o processo chega ao fim? Deve ser declarado sempre inválido, mesmo posteriormente? Em outras palavras: Poder-se-ia ir tão longe como considerar causa de nulidade a falta de um pressuposto processual? Ou na falta de qual deles corresponde este efeito? Quais impedimentos processuais são — para usar uma comparação aproximada — impedimenta dirimentia; quais são somente impedimentia? Onde se encontra o critério para uma distinção semelhante? Somente com a resposta a estas perguntas conseguirá a teoria das nulidades um fundamento seguro”. [7]
Nada obstante, como havia consignado, a consunção processual, até então, é vista sob a perspectiva do beneficiado pela extinção anômala do processo, considerando, obviamente, a sentença de mérito a ser prolatada. Está é a dicção do artigo 249, § 2º, do Velho do CPC e do artigo 257, § 2º, do Novo CPC.
Pois bem, o Novo CPC, no referente aos recursos augustos e angustos, rompe com esse liame, eis que permite o conhecimento do recurso tempestivo interposto, embora claudique na regularidade, independentemente do resultado do seu julgamento.
Sem dúvida, isso é algo de novo[8].
Nesse quadrante, o vício seria desconsiderado — consumido — conhecendo-se o recurso e julgando seu mérito, sem qualquer consideração ou ligação entre o beneficiado pelo descompasso e o resultado do julgamento.
Portanto, apesar da regra geral da consunção processual entesourar o vício e o resultado do julgamento (artigo 257 do Novo CPC), nos recursos especiais e extraordinários aquela ligação é cortada, prescindindo-se da mesma. O eventual beneficiado pela existência do descompasso processual (recorrido) poderá ver o recurso conhecido e provido contra seus interesses.
Em sendo assim, a consunção processual opera no recurso especial e extraordinário com maior vigor, alheia a perquirições sobre o resultado do julgamento da pretensão recursal. Resta esperar a interpretação que será conferida ao preceptivo proposto, notadamente sobre o “defeito formal que não se repute grave”.


[1] Designaremos o projeto de Novo Código de Processo Civil, tramitando atualmente na Câmara de Deputados tombado pelo número 8046/2010 (Disponível em: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/831805.pdf Acesso em: 8 abr. 2011) , com  a expressão “Novo CPC”, sendo que, em contrapartida, o atual Código de Processo Civil — lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 —, pelo rótulo “Velho CPC”
[2] Discutir-se-á sobre os vícios eventualmente passíveis de consumição (pressupostos, requisitos e etc.).
[3] “Este dualismo sempre foi decisivo na classificação do procedimento judicial. Ele levou a uma divisão do processo em dois capítulos, dos quais um se destina à investigação da relação litigiosa material e o outro, ao exame dos pressupostos processuais. Assim, no processo civil romano precede ao trâmite de mérito (o procedimento in judicio) um trâmite preparatório (in jure), o qual estava destinado exclusivamente à determinação da relação processual, ad constituendum judicium (a constituir um juízo). (BÜLLOW, Teoria das Exceções e dos Pressupostos Processuais). Obviamente, o argumento engendra uma incorreção histórica, há muito objeto de glosa, pela inexistência, já no direito romano, de separação rígida entre tais fases.
[4] Reputo melhor enquadrar os pressupostos processuais e as condições da ação na categoria do juízo de admissibilidade do processo, contrapondo-os, na medida do possível, ao juízo de mérito (DIDIER, Pressupostos processuais e condições da ação).
[5] CARVALHO, Teoria dos pressupostos e dos requisitos processuais.
[6] SOUZA, Miguel Teixeira, Sobre o sentido e a função dos pressupostos processuais.
[7] BULLOW.
[8] Frise-se, no artigo citado, MIGUEL TEIXEIRA se refere ao acolhimento das teses de RIMMELSPACHER por certa jurisprudência alemã, atrelada a admissibilidade recursal, mas sempre considerando os elementos do processo a apontar a improcedência do recurso interposto.